Liberalismo médico, verdade fática ou opinião?

“O conhecimento pequeno é coisa perigosa” – Alexander Pope

O professor Umberto Eco, filósofo e escritor italiano, ao receber da Universidade de Torino, em 2015, o título de Doutor Honoris Causa em Cultura e Comunicação de Mídia, disse que: “… as mídias sociais deram direito a palavra a legiões de tolos”. De fato, a invasão dos rasos entre os “influentes” serviu de substrato para a atual proliferação da “pós-verdade” do dramaturgo Steve Tesich.

A internet, ao permitir a transmissão instantânea e em larga escala de conteúdos impactantes, proporcionou ambiente no qual os fatos podem se descolar da realidade. O mundo virtual tornou-se lugar onde os ânimos, preferências partidárias, inclinações ideológicas ou interesses diversos exercem controle ou influência de pessoas por meio de mentiras, boatos ou opiniões. Constituindo perfeito modelo generalizável de funcionamento, a que nominou Michel Focault de “panoptismo”, uma maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana das pessoas. Ou seja, estaria admitida em toda sua dimensão hermenêutica, a fala de Nietzsche de que: “não há fatos, apenas versões”.

Estrategistas em Ciências Políticas, por meio de recursos matemáticos, aproveitam-se do fenômeno e estudam situações onde indivíduos escolhem diferentes ações na tentativa exclusiva de melhorar o seu retorno. Para tal, dobram a verdade, distorcem e divulgam o engano; abusam do defeito da natureza humana que é capaz de acreditar muito mais no que convém do que naquilo que está atrelado às verdades factuais.

Nesse cenário neo-obscurantista, não faltam exemplos caricatos e patognomônicos da conveniência sobreposta à verdade, destaquem-se os movimentos antivacina. Conduzidos com pseudociência e teorias conspiratórias, como a de que médicos estão mancomunados com a indústria farmacêutica, os apocalípticos antivacina atuam com grande individualismo social. Sua postura de falsa segurança ganha força em parcelas da sociedade, pessoas passam a defender posicionamentos de maneira raivosa, desencadeando mecanismos progressivamente reativos e opostos às evidências científicas. Ainda quando severamente confrontados e mesmo diante de robustas provas em contrário, encerram alegações com argumentos do tipo: “essa é a minha opinião”. Tal fenômeno é potencializado pela crise de confiança e representatividade em que mergulhou a sociedade atual, cobrindo com o manto da suspeição médicos e cientistas antes respeitados; dando voz à “opinião” dos tolos. Paradoxo que faz das vacinas vítimas do próprio sucesso como instrumento de imunização.

Não muito distante da neo revolta da vacina, está o antiliberalismo totalitário, ferrenho opositor aos princípios liberais por meio do Estado forte e interventor. Defendem os antiliberais a restrição de direitos e garantias individuais, em posição de severa ameaça ao estado democrático de direito. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, inComo as Democracias Morrem”, apontam quatro principais indicadores do comportamento autoritário: 1. Rejeição às regras democraticamente estabelecidas; 2. Negação da legitimidade dos opositores; 3. Tolerância ou encorajamento à violência; e 4. Propensão a restringir liberdades de oponentes. Segundo os autores, os atributos são frequentes entre antiliberais.

Para o médico, o liberalismo é um importante princípio do exercício profissional. Está intimamente ligado à possibilidade de ação livre, ampla e desimpedida para a escolha, conjuntamente com seu paciente, dos meios diagnóstico mais indicados e da melhor conduta terapêutica a ser seguida. O liberalismo é indivisível da própria figura do médico, prerrogativa inalienável da profissão, característica que mais interessa ao paciente que ao próprio médico, pois, quando alijado de liberdade e autonomia, o médico resta incompleto e incapaz de individualizar e dividir a assistência, revelando-se menos útil ao seu paciente.

Também por “liberalismo médico”, entende-se a autonomia na prestação dos seus serviços a quem o médico deseje. Alexandre Lacassagne, médico legista francês do final do século XIX, costumava dizer que: “Em princípio, é inteiramente livre o exercício da medicina. O médico pode recusar seu ministério, e sua recusa peremptória não tem necessidade de ser justificada por motivos graves e legítimos. O exercício da medicina é, em geral, puramente voluntário”.

 O pensamento de Lacassagne se mostra extremamente atual quando confrontado com o Código de Ética Médica, Resolução CFM nº  2.217/2018, note-se:

Princípios Fundamentais

[…]

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

 Obviamente, é ponto pacífico aceitar que o princípio da liberdade é relativo, pois a profissão médica, a exemplo de tantas outras, traz consigo elevados valores coletivos ligados aos direitos humanos e a bioética. Logo, é mister restar clara a impossibilidade da liberdade pura do exercício profissional médico, sob pena de paternalismo e maleficência. Pois, além do relevante interesse público, ainda é garantia dos direitos do utente cercear liberdade do médico que se contraponha à saúde pública, a autonomia do paciente ou à legislação pátria.

Nesse sentido, estão os artigos 1º e 31 do Código de Ética Médica, perceba-se:

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

[…]

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Do ponto de vista legal, o liberalismo médico nasce do artigo 5º, inciso XIII da Constituição Federal: “… é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Encontra outorga na recepcionada Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, em seu artigo 17, note-se:

“Art. 17 – Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade”.

No mesmo sentido está a Lei do Ato Médico, Lei nº 12.842/2013:

Art. 6º A denominação ‘médico’ é privativa do graduado em curso superior de Medicina reconhecido e deverá constar obrigatoriamente dos diplomas emitidos por instituições de educação superior credenciadas na forma do art. 46 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, vedada a denominação ‘bacharel em Medicina’.

 Portanto, transparece cristalina a verdade fática de que a medicina é profissão regulamentada em lei; e que o detentor da denominação “médico” está legalmente habilitado para a profissão, sendo a este lícito exercer toda a medicina, com liberdade e autonomia, nas suas mais amplas e vastas áreas de conhecimento. Todavia, devendo pautar-se rigorosamente pelo Código de Ética Médica, normativo que abrange as situações de responsabilidade ética em relação ao trabalho médico com exclusividade. O título de especialista, por exemplo, constitui certificação técnica e não habilitação legal, embora o registro do título no CRM seja condição sine qua non para o anúncio da especialidade.

Cercear a amplitude da atuação do médico, defendendo que: o exercício de determinada área médica só é lícito quando o profissional é detentor do respectivo título de especialista; ou que a liberdade e autonomia na medicina está de qualquer forma regulada por sociedades ou associações de especialistas; ou que o médico está obrigado a prestar serviços a quem não deseje (excetuadas as previsões éticas); é descolar-se da realidade acreditando no que convém. É sobrepor a verdade com interesses próprios, revelando-se reativo, autoritário, oposto às evidências e de grande individualismo social. É sustentar-se com o incauto: “essa é a minha opinião”.

Cristofer Diego Beraldi Martins

Conselheiro do CRM-DF

Brasília, 12 de julho de 2019.

 

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